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Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta, mas um dia afinal eu toparei comigo…*

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Foto: Acervo IEB

No fundo do mato virgem, Mário de Andrade buscava as raízes de nosso imaginário na década de 1920. Macunaíma¸ rapsódia concebida de uma só tacada em dezembro de 1926 em Araraquara, na Chácara de Tio Pio, onde Mário costumava pousar com frequência, foi publicada em 1928. O modernista ainda remexeu a obra algumas vezes até chegar a uma versão definitiva. Passando por Amazonas, São Paulo, Paraná, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Natal, Mato Grosso, Minas Gerais, Macunaíma é um misto de pensamento mágico, ditos populares, lendas e costumes indígenas, crendices, cultura popular e reflexões do próprio Mário de Andrade a respeito do que ele definia como caráter brasileiro. Além dessa busca por um imaginário nacional, o modernista mostrava-se avesso aos regionalismos e ao exotismo, buscando uma síntese ao desgeograficar o país com as andanças de Macunaíma pelos estados brasileiros.

A inspiração antropológica presente na rapsódia do herói sem caráter merece consideração. Mário mostrava-se preocupado em definir possíveis brasilidades, características que definissem a alma do brasileiro. Além da busca da síntese do imaginário brasileiro, desenhava uma linguagem mais coloquial, buscando incorporar o modo de falar à língua culta, escrita, detectando aí um descompasso: falávamos brasileiro e escrevíamos português. A mestiçagem e a questão do pertencimento também estão presentes em Macunaíma, numa abordagem melancólica, pessimista, filiada à mesma vertente de Retrato do Brasil, de Paulo Prado (Macunaíma, aliás, é dedicado a Prado).

Macunaíma nasce preto, retinto, e no correr de sua trajetória em busca da Muiraquitã torna-se branco. Parte de sua gente, no Uraricoera, rumo à cidade grande, e sua busca se perde em meio às distrações do novo mundo. Por fim, tão logo recupera a Muiraquitã a perde novamente e não consegue se adaptar em sua volta ao Uraricoera tendo provado a cidade grande. Sem pertencer a nenhum dos dois mundos, resta-lhe virar uma constelação: Ursa Maior. “É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de todo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu. ”

O herói, com toda sua personalidade inconstante, foi retirado da mitologia indígena dos Taulipangues sistematizada por Theodor Koch Grunberg em Vom Roroima zum Orinoco, onde Mário encontrou o lendário do deus Makunaíma. A obra foi lida pelo modernista em 1926, ano em que produziu a primeira versão de seu livro. A inspiração antropológica da obra de Mário está também nas fontes utilizadas – relatos e representações pictóricas de paisagens, costumes e tipos genuinamente brasileiros, registrados por paisagistas e naturalistas europeus como Saint-Hilaire, Spix e Martius, Langsdotff, Debret, Rugendas, Pero Vaz de Caminha, Pero de Magalhães Gandavo, Gabriel Soares de Souza, André Thevet; trabalhos etnográficos de Curt Nimuendaju, Koch Grunberg, Hans Staden; obras de autores românticos brasileiros que buscaram também, embora de forma diversa, resgatar o índio brasileiro e uma certa história primitiva do país, em especial José de Alencar. Munido de toda esta leitura, Mário de Andrade viaja empunhando bloco de notas e uma codaquinha, em junho de 1927, ao Amazonas. Tal qual um etnógrafo, parte disposto a documentar o que encontrasse com sua inseparável câmera fotográfica. Desta viagem traz um conto – Balança, Trombeta e Battleship – e novos acréscimos à redação de Macunaíma.

Desvendar o herói sem caráter significa lê-lo à luz de tudo isso. O interesse de Mário por desvendar o que seria o imaginário dos brasileiros passou por sendas que incluíam literatura, artes plásticas, arquitetura, música, entre outras. Dado à sensualidade, Mário, embora tenha viajado pouco, passou por experiências marcantes no que diz respeito ao seu objeto de interesse. Obstinado, viajava sempre com o objetivo, explícito ou não, de colecionar manifestações culturais regionais e tipos brasileiros. Assim ia ampliando seu repertório de Brasil.

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Foto: Acervo IEB

Em 1919 Mário ruma para Minas para se encontrar com a obra de Aleijadinho. Em 1923 vai ao Rio de Janeiro especialmente para se entregar ao carnaval carioca. Em 1924 retorna ao itinerário mineiro, desta vez acompanhado pela trupe paulistana e pelo poeta Blaise Cendrars em sua primeira visita ao Brasil. Em 1927 ruma ao Amazonas, numa viagem que lhe rendeu mais de 500 fotografias. Em 1929 viaja ao Nordeste, destino mais amplamente acalentado por ele. Em todas essas viagens toma notas, faz estudos, recolhe canções, causos e outros dedos de prosa. Degusta comida e bebida, participa de manifestações locais, acompanha apresentações de danças dramáticas.

Na viagem ao Amazonas, em 1927, com pouco tempo para a escrita, Mário desenha com a luz. Os registros de sua codaquinha mostram o cotidiano das pessoas às margens dos rios, pequenos vilarejos, mercados como o Ver-o-Peso, de Belém, e o Museu Goeldi. Fauna, flora, palafitas, embarcações, igrejas. Fotografa sobretudo o nortista, proporcionando um retrato bastante etnográfico que será refletido em sua obra. Assim, o poeta poderia montar o quebra-cabeça do norte unindo, em terras paulistanas, suas recordações sensoriais com as anotações e os instantâneos produzidos por sua máquina. Macunaíma, cuja primeira versão encontrava-se já escrita desde o ano anterior, completa-se com essa viagem ao Amazonas.

A coleção de impressões pessoais, fotos e leituras, Mário acresce uma rica troca de correspondências com escritores de diversas partes do Brasil, muitos deles companheiros nessas viagens. Essa troca também foi responsável por adicionar peculiaridades de várias partes do país a seu repertório, seja através de casos, de fotos, de notícias ou mesmo do rico debate travado em torno do movimento modernista, das pelejas entre língua culta e língua coloquial e da definição de uma possível brasilidade. A vários destes destinatários, Mário relatou parte do processo de construção de Macunaíma e solicitou informações que pudessem enriquecer sua rapsódia.

A Manuel Bandeira pede, em carta de janeiro de 1928: “Olhe, pergunte como coisa de você, pro Gilberto [Freyre] se ele sabe o nome de alguma rendeira célebre de Pernambuco ou do Nordeste qualquer. Se não for de Pernambuco ele que diga donde ela é. É pro Macunaíma.” Na época, Mário fazia nova revisão no livro, que seria publicado em julho daquele ano. Em agosto de 1928, já com o trabalho em mãos, Bandeira escreve a Mário: “Você me dá a impressão de vir fechar um ciclo com ela. (…) Você vasculhou o Brasil inteiro e aproveitou quase tudo.”

A Carlos Drummond de Andrade, Mário escreve em janeiro de 1927, portanto antes da viagem ao norte e logo após a primeira redação de Macunaíma: “O caso é que me veio na cachola o diacho duma ideia de romance engraçado e já posso apresentar pra você o senhor Macunaíma, índio legítimo que me filiou aos indianistas da nossa história e andou fazendo o diabo por esses Brasis à procura da Muiraquitã perdida. (…) Não tem senão dois capítulos meus no livro, resto são lendas aproveitadas com deformação ou sem ela”. No mês seguinte do mesmo ano, Mário detalha ainda mais o processo de composição do livro a Drummond: “(…) para mim essas grandes lendas tradicionais dos povos são as histórias os casos os romances mais lindos que se pode haver. Meu Macunaíma nem a gente não pode bem dizer que é indianista. O fato dum herói principal de livro ser índio não implica que o livro seja indianista. A maior parte do livro se passa em São Paulo. Macunaíma não tem costumes índios, tem costumes inventados por mim e outros que são de várias classes de brasileiros. O que procurei caracterizar mais ou menos foi a falta de caráter do brasileiro que foi justamente o que me frapou quando li o tal ciclo de lendas sobre o herói taulipangue.”

Macunaíma representa, mais do que uma obra à frente de seu tempo, pouco compreendida pelos pares de Mário de Andrade quando foi concebida, uma síntese de tudo o que ele leu, viu, registrou e percebeu que pudesse contribuir para minimamente responder a uma inquietação própria do modernista: o que realidades tão diferentes, pessoas tão diferentes, podem ter em comum num país tão grande? O que pode costurar a existência de todas elas além do país ao qual pertencem? Mário descobriu, mais do que o Brasil, a si mesmo dentro desse país. Passou a ter os olhos abertos para o que ecoava dentro dele mesmo: eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta.

Mário flagra a cultura popular, tão atraente a seus olhos, sobrevivendo nos recantos mais pobres, afastada do centro civilizado. Um processo que ele testemunhava também em São Paulo. Toda a modernidade, ou a corrida rumo à modernidade, era imposta às custas de varrer para a periferia e regiões mais longínquas tudo o que aparentemente fugia a essa classificação: manifestações populares, danças dramáticas, procissões religiosas, folguedos, canções etc.

O processo de criação de Macunaíma se define, assim, como forma de acesso a outros mundos e, obrigatoriamente, revisão de seu próprio mundo. Assim flagramos Mario de Andrade, absolutamente entregue às transformações constantes de si mesmo pelo contato com elementos cuja lógica apresentava-se a ele completamente diversa de sua ótica paulistana, formada por uma base europeia. Isso transparece ainda na primeira viagem, em 1927, quando, a 18 de maio, escreve o modernista em seu diário de turista aprendiz: “Não sei, quero resumir minhas impressões desta viagem litorânea por nordeste e norte do Brasil, não consigo bem, estou um bocado aturdido, maravilhado, não sei… Há uma espécie de sensação ficada da insuficiência, de sarapintação, que me estraga todo o europeu cinzento e bem-arranjadinho que ainda tenho dentro de mim. Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares foram feitos muito às pressas, com excesso de castroalves. E esta pré-noção invencível, mas invencível, de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulários, quitutes…E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa. Nos orgulhamos de ser o único grande (grande?) país civilizado tropical…Isso é o nosso defeito, a nossa impotência. Devíamos pensar, sentir como indianos, chins, gente de Benin, de Java…Talvez então pudéssemos criar cultura e civilização próprias.”

Nesse sentido, Mário, que inicialmente se batia por apenas dois mundos – a Europa e o Brasil (entendido naquele momento inicial, momento de partida, como São Paulo) -, ao iniciar sua jornada pelo país se depara com Brasis, uma profusão tão grande de mundos que coloca ao modernista a necessidade de encontrar uma lógica em tudo isso.

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Foto: Acervo IEB

A diversidade do povo brasileiro, as características peculiares a cada região e as condições de vida tão desigualmente distribuídas, tudo isso fez com que na década seguinte (1930), já à frente do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Mário procurasse valorizar a cultura popular e incentivar o desenvolvimento de estudos e pesquisas antropológicas que, em sua ótica, eram reveladores dos diversos Brasis e brasileiros que o habitavam. Foi neste período que Claude e Dina Lévi-Strauss estiveram em São Paulo e realizaram cursos e pesquisas, inclusive, para o Departamento, contratados pelo próprio Mário de Andrade, sendo co-fundadores da Sociedade de Etnografia e Folclore que funcionou até a saída do modernista do Departamento.

Publicado em 1928, Macunaíma fecha um ciclo para que outro se inicie: na década de 1920, Mário buscou apreender o outro; a partir da década de 1930 ele começa a se indagar como acomodar esse outro dentro de si mesmo.

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*Esse artigo foi elaborado por mim a pedido de um amigo para uma edição sobre Mário de Andrade publicada pelo Jornal O Primeiro de Janeiro, que circulada na cidade do Porto, em Portugal. Foi publicado em julho de 2008, quando minha obsessão pelo Marião de Andrade ainda me consumia um pouco. Em 2005 defendi mestrado em antropologia sobre ele e Oswald de Andrade, com a dissertação “Arqueologia Modernista: viagens e reabilitação do primitivo em Mário e Oswald de Andrade“.



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